A
filosofia na Grécia nasce com o problema da origem do mundo e do princípio
primeiro de todas as coisas. A interpretação mítica constitui inicialmente a
característica predominante dos povos antigos para explicação de diversos
fenômenos da natureza. Seu nascimento desenvolve-se acompanhado de significação
religiosa que se expressa através de representações fantasiosas e não
racionais, permanecendo sempre, portanto, aquém do logos.
O homem se sente circundado por forças ocultas e misteriosas
que não consegue compreender, sendo levado assim a forjar divindades que
personificam os elementos e fenômenos da natureza (politeísmo antropomórfico). Esse
naturalismo místico-religioso constitui a primeira resposta para problemas que
serão posteriormente formulados e discutidos de forma mais rigorosa com o
advento da filosofia. Nesse sentido o mito talvez possa ser compreendido como
uma espécie de protótipo da teologia.
Porém quando se fala de religião grega é necessário
distinguir claramente entre religião pública e religião dos mistérios. A
religião pública é essencialmente antropomórfica e naturalista. Os deuses
seriam forças naturais calcadas em formas humanas idealizadas e personalizadas;
não sendo intenção deles santificar o homem ou elevá-lo acima dele mesmo. As
divindades não exigiam mudança íntima do modo de pensar humano, nem qualquer
tipo de luta contra suas tendências naturais e impulsos. Ao contrário, tudo que
para o homem é natural, vale diante da divindade como legítimo. O homem mais
divino seria, portanto, aquele que cultiva com mais empenho suas forças
humanas, agindo conforme a sua própria natureza. Outra característica da
religião pública é não ser revelada, mas natural. Não havia, portanto, livros
sagrados considerados frutos de revelação divina ou qualquer dogmática fixa e
imutável. Tal ausência abriria espaço à liberdade da especulação filosófica e
permite-nos constatar que inicialmente a religião pública exerceria grandes influências
sobre as reflexões dos filósofos gregos.
Por outro lado, na religião dos mistérios conhecida também
pelo nome de orfismo, o homem possui um princípio divino, um ‘demônio’ (daimônion) unido ao corpo por causa de
uma culpa original. Tal daimônion sobrevive
à morte do corpo e sendo imortal passaria através de metempsicose por uma série de reencarnações (ou reanimações) até
expiar completamente a sua culpa; processo alcunhado também como “roda de
nascimentos” cujo o aspirante a sábio e filósofo ambiciona se livrar. A vida
órfica e suas práticas de purificação seriam, portanto, o caminho para por fim
a esse ciclo, uma vez que não haveria necessidade de reencarnação após ter-se
atingido um determinado estado de perfeição e felicidade. Já os demais homens
impuros estariam ainda condenados a posteriores reencarnações.
Nota-se aqui que o orfismo tem, portanto, uma visão negativa
da existência humana, tendo-a como uma punição ou castigo por uma injustiça
cometida em outras vidas; bem como uma visão pessimista a respeito da dimensão
corpórea do ser humano que seria como uma espécie de cárcere e prisão da alma.
Vê-se, com efeito, que a principal diferença entre a religião
pública e dos mistérios diz respeito às relações entre alma e corpo. Enquanto a
religião pública tem uma concepção unitária da alma e do corpo, a dos mistérios
professa uma concepção dualista. A consequência imediata da religião dos
mistérios é, portanto, a imposição de uma ascese rigorosa para livrar-se ao
máximo das influências negativas da corporeidade de forma a transcender a
matéria. Tais exigências de ascese como processo de purificação inexistem nas
religiões públicas.
Entretanto a tendência a dar estruturação mítica ao
pensamento não é exclusividade da religião, mas acompanha outras expressões do
comportamento humano. Ainda hoje é possível observar a tendência de construção
de mitos em torno da política, dos esportes, da música, entre outras áreas. Ao
mesmo tempo em que se avança o processo de secularização da sociedade, irrompe
a construção de novos mitos e deuses modernos. Essa peculiaridade será apontada
por Mircea Eliade como veremos mais a diante; bem como explorada, aprofundada e
estendida para outras significações mais amplas pelo filósofo canadense Charles
Taylor em suas famosas obras “Uma era Secular” e “Ética da Autenticidade”.
O fenômeno religioso é de fato muito estudado tanto pela
filosofia, como por outras ciências na tentativa de explorar metodicamente a
consciência religiosa concreta e suas múltiplas objetivações na história; visando
assim elucidar a questão da possibilidade e essência formal da religião na
existência humana. A consciência do homem e sua autocompreensão a partir do
absoluto, bem como a abertura do homem para o mistério que viabiliza uma
relação direta do ser humano com o numinoso, são, pois, objetos de estudo e
intensa reflexão por Mircea Eliade.
Dissecar a realidade do homo
religiosus implica tocá-lo em sua raiz ontológica, na medida em que se
procura adentrar e compreender seu princípio primeiro e fundamento último. Tenciona
e engloba, dessa forma, a pessoa como um todo; no seu modo próprio de ser de existência religiosa. A religião realiza-se, portanto,
na própria existência humana. A partir do divino, o homem religioso sabe-se
determinado a algo maior que ele mesmo; tomando atitudes de quem se sente
desafiado, de quem experimenta um apelo.
Nesse sentido do sentir e da experiência religiosa como um
todo, é possível remeter-se também à Rudolf Otto que já analisara como as
pessoas percebem e reagem diante do sagrado em suas múltiplas manifestações nos
diferentes credos de diversas religiões. Sua análise propõe a realidade
apriorística do numinoso em diversos elementos racionais e, sobretudo
irracionais, cujos principais aspectos são descritos nas categorias do Mysterium Tremendum, isto é, do tremendum (arrepiante), majestas (avassalador) e mysterium (o “totalmente outro”). O
numinoso seria dessa forma, um mistério terrível, assombroso e fascinante ao
mesmo tempo e que não seria localizável ou racionalmente dedutível em sua
origem última. Para Otto seriam, portanto, as experiências diante do sagrado
que em última análise fundamentariam a religião.
No entanto, Eliade propõe uma perspectiva mais ampla, ao
apresentar o fenômeno do sagrado em toda sua complexidade e não apenas no que
ele comporta de irracional. Sua preocupação não está em como se relacionam os
elementos racionais e irracionais, mas sim no sagrado na sua totalidade.
A rotura na homogeneidade do espaço e revelação de uma
realidade absoluta estabelece um ponto fixo, um centro e uma referência para o
homem religioso. Esse fenômeno, chamado de hierofonia, será uma experiência
primordial, por ser capaz de reordenar toda a vida de um indivíduo. A
existência de um espaço significativo no qual há irrupção do sagrado corresponde
a uma verdadeira fundação ontológica do mundo que adquirirá, portanto, valor
cosmogônico de orientação.
Na existência profana, no entanto, o espaço é homogêneo e
neutro. Não há roturas ou quaisquer diferenciações qualitativas de suas partes,
dada sua recusa da sacralidade do mundo. Já não há ponto fixo ou qualquer lugar
que goze de estatuto ontológico do mundo, apenas uma enorme massa amorfa de
lugares diversos. A relatividade e continuidade do espaço são, pois, sua
consequência direta, extinguindo a condição de possibilidade de quaisquer
teofanias que demarcariam o limiar do espaço consagrado em que seria possível
transcender o mundo profano.
A falta de orientação da existência profana implica assim na
experiência de uma tensão provocada pela falta de certezas apodíticas que para
o homo religiosus são reveladas por uma instância superior. Na posse delas, o
homem religioso se esforça por manter-se nesse ponto fixo, nesse centro do
mundo, pois só consegue viver em uma atmosfera impregnada do sagrado. Seu
desejo de por fim a experiências meramente subjetivas que poderiam levá-lo a
ilusões ou a perda de tempo tem, portanto, relação direta em quere situar-se
nessa realidade objetiva e assim viver num mundo santificado, real e eficiente.
Com efeito, para o religioso, o sagrado é o real por excelência.
É necessário, porém, ressaltar que em Eliade a existência
profana dificilmente se encontra em estado totalmente puro personificada num
indivíduo. Mesmo o homem que recusa abertamente a existência do sagrado, não
consegue abolir completamente o comportamento religioso. Dessa forma, a
maioria dos que hoje se declaram “sem religião” teriam comportamentos
religiosos ainda que de forma inconsciente.
Eliade vê o homem profano como um indivíduo atarantado por
todo um aparato mágico-religioso, porém expresso através de uma mitologia
camuflada, com numerosos ritualismos degradados até a caricatura e por isso
irreconhecíveis. Com efeito, o processo de dessacralização da existência humana
se expressaria em tantas formas híbridas que permitiriam afirmar que o homem
profano descende do próprio homo religiosus, não podendo assim anular e negar o
comportamento dos seus antepassados que influenciaram e ajudaram a constituí-lo
tal como ele é hoje na sua irreligiosidade.
Exatamente por isso seria necessário redescobrir a
importância das imagens e principalmente dos símbolos, reconhecendo-os em suas
relações com os diversos elementos presentes na modernidade. Modernidade essa
classificada como líquida em Zygmunt Bauman, dada a fluidez,
liquidez e volatilidade de incerteza e insegurança provenientes ausência de
referências morais que existiam outrora mas que foram recentemente solapadas
pelo processo de secularização; dando assim amplo espaço à lógica do agora, do
consumo, do gozo e a da artificialidade.
As imagens, os símbolos e os mitos não seriam assim tolas
criações irresponsáveis do psiquismo do homem primitivo, mas corresponderiam para
Eliade a uma necessidade universal do homem, ao preencher a função de revelar
as modalidades mais secretas do ser. O pensamento simbólico seria, portanto,
algo intrínseco do ser humano e estudá-lo seria primordial para se conhecer
melhor o homem e assim se aproximar mais de sua própria humanidade.