sábado, 2 de maio de 2015

A Religiosidade do Irreligioso


A filosofia na Grécia nasce com o problema da origem do mundo e do princípio primeiro de todas as coisas. A interpretação mítica constitui inicialmente a característica predominante dos povos antigos para explicação de diversos fenômenos da natureza. Seu nascimento desenvolve-se acompanhado de significação religiosa que se expressa através de representações fantasiosas e não racionais, permanecendo sempre, portanto, aquém do logos.

O homem se sente circundado por forças ocultas e misteriosas que não consegue compreender, sendo levado assim a forjar divindades que personificam os elementos e fenômenos da natureza (politeísmo antropomórfico). Esse naturalismo místico-religioso constitui a primeira resposta para problemas que serão posteriormente formulados e discutidos de forma mais rigorosa com o advento da filosofia. Nesse sentido o mito talvez possa ser compreendido como uma espécie de protótipo da teologia.

Porém quando se fala de religião grega é necessário distinguir claramente entre religião pública e religião dos mistérios. A religião pública é essencialmente antropomórfica e naturalista. Os deuses seriam forças naturais calcadas em formas humanas idealizadas e personalizadas; não sendo intenção deles santificar o homem ou elevá-lo acima dele mesmo. As divindades não exigiam mudança íntima do modo de pensar humano, nem qualquer tipo de luta contra suas tendências naturais e impulsos. Ao contrário, tudo que para o homem é natural, vale diante da divindade como legítimo. O homem mais divino seria, portanto, aquele que cultiva com mais empenho suas forças humanas, agindo conforme a sua própria natureza. Outra característica da religião pública é não ser revelada, mas natural. Não havia, portanto, livros sagrados considerados frutos de revelação divina ou qualquer dogmática fixa e imutável. Tal ausência abriria espaço à liberdade da especulação filosófica e permite-nos constatar que inicialmente a religião pública exerceria grandes influências sobre as reflexões dos filósofos gregos.

Por outro lado, na religião dos mistérios conhecida também pelo nome de orfismo, o homem possui um princípio divino, um ‘demônio’ (daimônion) unido ao corpo por causa de uma culpa original. Tal daimônion sobrevive à morte do corpo e sendo imortal passaria através de metempsicose por uma série de reencarnações (ou reanimações) até expiar completamente a sua culpa; processo alcunhado também como “roda de nascimentos” cujo o aspirante a sábio e filósofo ambiciona se livrar. A vida órfica e suas práticas de purificação seriam, portanto, o caminho para por fim a esse ciclo, uma vez que não haveria necessidade de reencarnação após ter-se atingido um determinado estado de perfeição e felicidade. Já os demais homens impuros estariam ainda condenados a posteriores reencarnações.

Nota-se aqui que o orfismo tem, portanto, uma visão negativa da existência humana, tendo-a como uma punição ou castigo por uma injustiça cometida em outras vidas; bem como uma visão pessimista a respeito da dimensão corpórea do ser humano que seria como uma espécie de cárcere e prisão da alma.

Vê-se, com efeito, que a principal diferença entre a religião pública e dos mistérios diz respeito às relações entre alma e corpo. Enquanto a religião pública tem uma concepção unitária da alma e do corpo, a dos mistérios professa uma concepção dualista. A consequência imediata da religião dos mistérios é, portanto, a imposição de uma ascese rigorosa para livrar-se ao máximo das influências negativas da corporeidade de forma a transcender a matéria. Tais exigências de ascese como processo de purificação inexistem nas religiões públicas.

Entretanto a tendência a dar estruturação mítica ao pensamento não é exclusividade da religião, mas acompanha outras expressões do comportamento humano. Ainda hoje é possível observar a tendência de construção de mitos em torno da política, dos esportes, da música, entre outras áreas. Ao mesmo tempo em que se avança o processo de secularização da sociedade, irrompe a construção de novos mitos e deuses modernos. Essa peculiaridade será apontada por Mircea Eliade como veremos mais a diante; bem como explorada, aprofundada e estendida para outras significações mais amplas pelo filósofo canadense Charles Taylor em suas famosas obras “Uma era Secular” e “Ética da Autenticidade”.

O fenômeno religioso é de fato muito estudado tanto pela filosofia, como por outras ciências na tentativa de explorar metodicamente a consciência religiosa concreta e suas múltiplas objetivações na história; visando assim elucidar a questão da possibilidade e essência formal da religião na existência humana. A consciência do homem e sua autocompreensão a partir do absoluto, bem como a abertura do homem para o mistério que viabiliza uma relação direta do ser humano com o numinoso, são, pois, objetos de estudo e intensa reflexão por Mircea Eliade.

Dissecar a realidade do homo religiosus implica tocá-lo em sua raiz ontológica, na medida em que se procura adentrar e compreender seu princípio primeiro e fundamento último. Tenciona e engloba, dessa forma, a pessoa como um todo; no seu modo próprio de ser de existência religiosa. A religião realiza-se, portanto, na própria existência humana. A partir do divino, o homem religioso sabe-se determinado a algo maior que ele mesmo; tomando atitudes de quem se sente desafiado, de quem experimenta um apelo.

Nesse sentido do sentir e da experiência religiosa como um todo, é possível remeter-se também à Rudolf Otto que já analisara como as pessoas percebem e reagem diante do sagrado em suas múltiplas manifestações nos diferentes credos de diversas religiões. Sua análise propõe a realidade apriorística do numinoso em diversos elementos racionais e, sobretudo irracionais, cujos principais aspectos são descritos nas categorias do Mysterium Tremendum, isto édo tremendum (arrepiante), majestas (avassalador) e mysterium (o “totalmente outro”). O numinoso seria dessa forma, um mistério terrível, assombroso e fascinante ao mesmo tempo e que não seria localizável ou racionalmente dedutível em sua origem última. Para Otto seriam, portanto, as experiências diante do sagrado que em última análise fundamentariam a religião.

No entanto, Eliade propõe uma perspectiva mais ampla, ao apresentar o fenômeno do sagrado em toda sua complexidade e não apenas no que ele comporta de irracional. Sua preocupação não está em como se relacionam os elementos racionais e irracionais, mas sim no sagrado na sua totalidade.

A rotura na homogeneidade do espaço e revelação de uma realidade absoluta estabelece um ponto fixo, um centro e uma referência para o homem religioso. Esse fenômeno, chamado de hierofonia, será uma experiência primordial, por ser capaz de reordenar toda a vida de um indivíduo. A existência de um espaço significativo no qual há irrupção do sagrado corresponde a uma verdadeira fundação ontológica do mundo que adquirirá, portanto, valor cosmogônico de orientação.

Na existência profana, no entanto, o espaço é homogêneo e neutro. Não há roturas ou quaisquer diferenciações qualitativas de suas partes, dada sua recusa da sacralidade do mundo. Já não há ponto fixo ou qualquer lugar que goze de estatuto ontológico do mundo, apenas uma enorme massa amorfa de lugares diversos. A relatividade e continuidade do espaço são, pois, sua consequência direta, extinguindo a condição de possibilidade de quaisquer teofanias que demarcariam o limiar do espaço consagrado em que seria possível transcender o mundo profano.

A falta de orientação da existência profana implica assim na experiência de uma tensão provocada pela falta de certezas apodíticas que para o homo religiosus são reveladas por uma instância superior. Na posse delas, o homem religioso se esforça por manter-se nesse ponto fixo, nesse centro do mundo, pois só consegue viver em uma atmosfera impregnada do sagrado. Seu desejo de por fim a experiências meramente subjetivas que poderiam levá-lo a ilusões ou a perda de tempo tem, portanto, relação direta em quere situar-se nessa realidade objetiva e assim viver num mundo santificado, real e eficiente. Com efeito, para o religioso, o sagrado é o real por excelência.

É necessário, porém, ressaltar que em Eliade a existência profana dificilmente se encontra em estado totalmente puro personificada num indivíduo. Mesmo o homem que recusa abertamente a existência do sagrado, não consegue abolir completamente o comportamento religioso. Dessa forma, a maioria dos que hoje se declaram “sem religião” teriam comportamentos religiosos ainda que de forma inconsciente.

Eliade vê o homem profano como um indivíduo atarantado por todo um aparato mágico-religioso, porém expresso através de uma mitologia camuflada, com numerosos ritualismos degradados até a caricatura e por isso irreconhecíveis. Com efeito, o processo de dessacralização da existência humana se expressaria em tantas formas híbridas que permitiriam afirmar que o homem profano descende do próprio homo religiosus, não podendo assim anular e negar o comportamento dos seus antepassados que influenciaram e ajudaram a constituí-lo tal como ele é hoje na sua irreligiosidade.

Exatamente por isso seria necessário redescobrir a importância das imagens e principalmente dos símbolos, reconhecendo-os em suas relações com os diversos elementos presentes na modernidade. Modernidade essa classificada como líquida em Zygmunt Bauman, dada a fluidez, liquidez e volatilidade de incerteza e insegurança provenientes ausência de referências morais que existiam outrora mas que foram recentemente solapadas pelo processo de secularização; dando assim amplo espaço à lógica do agora, do consumo, do gozo e a da artificialidade.

As imagens, os símbolos e os mitos não seriam assim tolas criações irresponsáveis do psiquismo do homem primitivo, mas corresponderiam para Eliade a uma necessidade universal do homem, ao preencher a função de revelar as modalidades mais secretas do ser. O pensamento simbólico seria, portanto, algo intrínseco do ser humano e estudá-lo seria primordial para se conhecer melhor o homem e assim se aproximar mais de sua própria humanidade.

sábado, 21 de fevereiro de 2015

Eros, satisfação e melancolia

                    
                                        (Hopper- Excursion into Philosophy)

A resistência argumentativa dos mais diversos posicionamentos em matéria de moralidade sexual tem ligação estreita com a necessidade humana de calar ou justificar-se perante a própria consciência. O contorcionismo intelectual empregado para negar certas verdades está constantemente enraizado mais em aspectos psicológicos de seus defensores do que com a robustez e sinceridade da verdade objetiva dos argumentos. A tese aqui defendida é exigente, porém acredita-se que seja a única antropologicamente correta. Existem muitas formas de combinar as peças que compõe a sexualidade humana porém apenas uma delas é capaz de humanizar o ser humano.

Elevar e integrar o sexo com a inteligência, vontade e sentimentos é humanizá-lo conforme a integralidade do homem que engloba não apenas sua natureza corpórea mas também espiritual. Isso só é possível quando todos os elementos que compõe a sexualidade humana estão presentes de forma harmônica. A combinação dos fatores; diferenciação, complementaridade, fecundidade e amor; só é possível dentro família tradicional de fundação matrimonial. Querendo ou não, a natureza humana é imutável nesse aspecto e de qualquer outra forma perde-se tempo.

Apesar do mundo caminhar a passos largos rumo a normatização do homossexualismo, da pedofilia e da aceitação plena do sexo despojado do eros e da fecundidade; a família tradicional continua sendo o projeto vital das pessoas de boa vontade. A tentativa de equipará-la à diversas outras agremiações existentes é decepcionante, entre outros motivos, por não se coadunar com o anseio humano de transcendência e infinitude.

O casal é um verdadeiro agente de transcendência. Carrega dentro de sua própria natureza um poder criador que só é possível como obra de um Absoluto ou participação Nele. É verdadeiramente surpreendente que de duas intimidades surja uma terceira jamais antes criada, irrepetível. Os pais deveriam se perguntar "Por que foi gerado esse filho e não outro?". Todo filho é, pois, um dom, um mistério e uma surpresa. A sacralidade do sexo está, com efeito, intimamente ligada à sacralidade da vida. Deixa de ser, portanto, meramente um ato biológico, para ser um verdadeiro exercício de transcendência, pois é uma real participação na força criadora. Deveria ser um verdadeiro escândalo que não nos admiremos frente uma realidade que clama forças superiores e divinas. A negação desse deslumbramento dá origem a uma explicação fria, positivista e incoerente para o surgimento da vida; pois a matéria não é condição de possibilidade do surgimento de uma nova vida.

A relação sexual está, portanto, naturalmente ordenada para a procriação da mesma forma que o ato de alimentar-se está para nutrição. Despojar artificialmente o sexo da fecundidade é, pois, como comer e vomitar. Atua-se hoje desse modo porque vivemos em uma cultura que vê o filho como uma cruz, uma desgraça e agindo dessa forma torna-se impossível unir o sexo ao eros, uma vez que separado da fecundidade.

O amor tende naturalmente a ser fecundo e o eros implica doação total e absoluta; que não pode ser manifesta quando há falta de confiança e reservas internas à ideia de uma vida compartilhada com o outro. No eros encontra-se de repente uma pessoa em particular que é bela e amável como nenhuma outra e que precisamente por isso, torna-se alguém sem a qual a nossa felicidade se apresenta como impossível. O enamorado quer a enamorada por si mesma não pelo prazer que lhe possa proporcionar. A atração física não é primária. O eros é, pois, uma forma de relação interpessoal na qual a sexualidade humana adquire seu sentido. O eros atua portanto como amor-dádiva-necessidade; uma afirmação do outro que tende para união com ele. No eros uma pessoa concreta, única e irrepetível se converte no meu projeto pessoal de vida. 

O processo que dá surgimento a esse fenômeno, chamado de 'enamoramento' é algo que apesar de ser possível cultivar, não é possível criar, pois simplesmente nos acontece, é algo gratuito e imerecido. Quem está no eros prefere partilhar o infortúnio com o ser amado do que tentar ser feliz de qualquer outra maneira. Por isso que o sexo vivenciado sem o eros é como um sorriso falso, uma careta, uma máscara. Da mesma forma que o sorriso deveria representar alegria; a entrega corporal deveria representar uma entrega total e não apenas a satisfação de um instinto. Sem o eros ter-se-ão, portanto, experiências sensíveis mas não interiores.

O eros apesar de nunca perder a atitude contemplativa da pessoa amada, deve, no entanto,  converter-se em amor como tarefa. O sexo está para o amor e não o amor para o sexo. Somente dentro do amor conjugal ele deixa de ser tirânico porque não pode produzir por si mesmo diversos elementos sem o qual o eros se extingue. Por isso que a vida sexual levada a serio facilmente decepciona, deve ser portanto desinteressada, porém não banalizada, para não correr o risco de vir a ser melancólica.

terça-feira, 31 de dezembro de 2013

A Beleza da Vida Ascética

Uma breve passeada na história da filosofia e encontram-se vários exemplos de escolas filosóficas e pensadores que se propunham um nível de austeridade desde o mais brando, passando pelo equilibrado até o praticamente desumano. Apesar do hedonismo ser característica consensual  da nossa sociedade, o asceticismo ainda atrai pessoas das mais variadas concepções de mundo e ser humano. Atuando como uma condição de possibilidade para sanidade do indivíduo, transforma-se quase em uma necessidade humana.

O sacrifício e o esforço se assentam sobre a própria estrutura da realidade na qual o homem encontra-se inserido. Todos o experimentam em maior ou menor grau, tirando maior ou menor proveito do seu caráter "proselitista"; dado que não há melhor forma de se converter ovelhas desgarradas à determinadas convicções, pelo atrativo público da exteriorização dos bons resultados que produzem.

Contudo nem todo sacrifício é valoroso, nem toda ascese é bela e moral. A divergência dos motivos que a sustentam não é irrelevante e é justamente o que determina a profundidade ou superficialidade da vida dos que a exercem. A beleza da vida ascética não é determinada tanto pelos resultados factíveis oriundos de sacrifícios feitos de forma organizada e constante, embora eles sejam cruciais num âmbito apostólico; mas principalmente pelos motivos que a fundamentam. É possível viver o asceticismo não só por motivos nobres mas também por motivos frívolos; e não é pouco frequente ver sacrifícios enormes alicerçados na ausência de valores superiores. Qual seria então o grande fator diferenciador?

Em poucas palavras; o asceticismo é belo e moral quando exercido para além de si mesmo e  extremamente alienante e nocivo quando voltado tão somente para si. Poucas coisas na vida são mais pueris do que utilizar a autoridade momentânea de um virtuosismo qualquer para enaltecer a si próprio.

No entanto, ter um motivo fora de si pela qual valha a pena mortificar-se e que ao mesmo tempo transcenda a transitoriedade da nossas necessidades é muito difícil na horizontalidade da ausência de transcendência. Desapegar-se de si mesmo, dos bens exteriores e das outras criaturas é condição sine qua non para a vivência do Cristianismo e ao mesmo tempo, verdadeiro divisor de águas entre ele e diversas outras concepções filosóficas que no final das contas, não passam de repristintações caricatas de um certo antropoteísmo.

A autossuficiência é uma tentação constante ao longa da história, em especial nos dias de hoje. A própria cultura atual termina por favorecer a criação de um indivíduo orgulhoso e desenraizado, sem convicções sólidas; gerando uma espécie de ser bipolar que oscila entre momentos de auto-suficiência e amor desordenado aos prazeres e outros de apatia e niilismo resignado. Internalizar convicções paradoxais e se vergar ao sabor de quaisquer ensinamentos e aforismos que lhe soem agradáveis é mais confortável que  preocupar-se com contradições lógicas de convicções irrefletidamente aceitas como verdade.

A questão central portanto não é a ascese em si mesma e sim o que a fundamenta. O cristão não se mortifica senão para viver uma vida superior; não luta senão para gozar da paz; não se despoja de bens passageiros senão para obter bens perenesA mortificação cristã não é pois um fim senão um meio; porém aqui o Fim  é infinitamente superior ao próprio homem. A exortação do Apóstolo Paulo nesse contexto aponta algo incômodo porém necessário: o cristão deveria sentir vergonha de se esforçar menos que aqueles que correm atrás de uma "coroa corruptível".

No final das contas, todo asceticismo na ausência de motivos sobrenaturais não deixa de ser um masoquismo em prol da tola deificação de si mesmo.

                                 "O trabalho sem Deus é inútil" Sl 126(127).

domingo, 12 de maio de 2013

Seriedade da morte e sua presença em cada ato de vida


Em cada época houve quem quisesse convencer a si mesmo e aos outros de que, diante da morte, não vale a pena se afligir com temores e tremores; e houve quem fizesse disso o problema essencial do homem. Para Nietzsche, que, como diz Jaspers, "absolutiza a vida" e "naturaliza" a morte, esta última é "a maior banalidade" que poderia no máximo interessar à "grei" dos homens; no processo cósmico, cuja lei é o "eterno retorno", o morrer é um acidente do "fato", muito embora aceitá-lo ou desafiá-lo sem esperança seja a única qualificação de "valor" da existência.

Pode-se lhe contrapor Unamuno de Amor y Pedagogia, para quem o único problema essencial é o da morte: não se preocupar com ele é não viver, porque "vivir es anelar la vida eterna". Nem se pode negar-lhe a razão: uma existência sem o pensamento da morte é falsa, sofisticada, inautêntica, porque fora da condição humana; submetida ao instinto. Não se pode viver existindo, isto é, com a "consciência" de viver, sem saber que vai morrer, nem se pode "banalizar" a morte sem banalizar a vida.

Expulsar a própria morte da consciência imediata ou reflexa é "fugir" para uma estulta "diversão", ou para uma banal "distração". Não pensar na morte não significa pensar mais intensamente na vida; ao contrário, é "distrair-se" da própria vida; e quem não pensa na vida afirma a morte e, com isso mesmo, a nega inteiramente. O vínculo dialético que une a vida, a morte e existência, implicando-as, não é acidental: a existência é vida e morte, morte porque vida, vida porque morte. Não dois "contrários", porque a morte, contrário da vida natural, não o é da existência espiritual, de cuja imortalidade é, antes, a condição essencial.

Tudo indica a profunda seriedade da morte: a indiferença ou ceticismo por ela recaem sobre a vida. Não se pode desvalorizar a morte sem cair violentamente numa ingênua contradição, sem acrisia e superficial dogmatismo: David Hume que, moribundo, fazia piadas sobre a morte, equiparou-se ao seu radical fenomenismo, mas se pôs abaixo da sua dignidade de homem.

Não raro este desprezo é somente pose, vaidade. Quem se ufana de demonstrar que morrer é algo de pouca monta ou indiferente encontrou um modo para dizer veladamente que no íntimo está convicto do contrário. Há diferença, escreve La Rochefoucauld, "entre o suportar a morte com firmeza e o desprezá-la: o primeiro caso é bastante frequente, o segundo não é, jamais, um exemplo de sinceridade"; nem mesmo de coragem e de racionalidade enquanto que, por muitos que seja os motivos para fugir à vida, nenhum constitui uma razão válida para desprezar a morte.

Outro é a "aceitação" consciente, que é a avaliação positiva e reconhecimento da sua seriedade; de fato, o cristão não a despreza e de modo algum lhe é indiferente; pode também desejá-la com a alma, mas justamente este desejo lhe confirma todo valor. "Sabê-la" desejar é algo bem diferente que suportá-la com firmeza "estoica": aqui há só a prova de uma virtude humana, lá uma presença religiosa que torna "verdadeira" esta virtude.

Vários são os modos de desvalorizar ou minimizar a morte e o valor humano e filosófico do problema, mas todos subentendem um ceticismo subterrâneo ou manifesto, que não leva nada a sério, menos ainda a morte, um dos tantos acidentes da existência, toda ela inessencial. No fundo, não se desvaloriza a morte como tal, mas enquanto acontecimento da vida, o último de uma série inteira sem valor.

Tal ceticismo pode endossar hábitos aparentemente resignados ou simples; por exemplo, este: "vive abandonado às leis naturais sem pensares na morte". Quem assim aconselha não somente suprime a consciência da morte, mas o pensamento enquanto tal: "viver sem pensar, sem refletir sobre o dia que vives, deixa-te levar espontaneamente pelo curso da vida". Um poeta, que se vangloria de ter vivido assim, maravilha-se de que a morte "tenha ousado pensar nele", que jamais havia pensado nela: a morte, mais inteligente, o restitui à sua consciência e conferiu à sua vida dignidade humana.

Esta forma de desprezo ou descuido difere só em parte de outra, que parece antiética e que se fundamenta sobre  uma tese metafísica: "pensa com a consciência de não morrer jamais, porque o pensamento é eterno". É a tese idealista já acenada, que coerentemente fez Gentile dizer que morrem os eu, mas o Eu é imortal.(...)

A tese idealista- e também plotiniana, averroísta, espinosiana- subentende uma afirmação errônea: pensar, pensando ou não pensando a morte, não muda nada. Tudo, porém, conforme se pense pensando que se vai morrer, ou como se isso não acontecesse, ao ponto de pensar sem pensar que vai morrer, é pensar sem pensar que existe o mundo.

A morte é problema do homem inteiro. Argumento de indagação filosófica não é o morrer como fato empírico ou de observação, este ou aquele morto, mas se o homem morre todo, morre também a consciência com a qual sabe que vai morrer. Mais exatamente: se morre o pensamento com o qual pensa a morte sem o qual a própria morte não existiria; o animal não sabe que vai morrer, só o homem o sabe, como observa Voltaire antes de tantos outros. Por enquanto, coloquemos os termos do problema: se eu não fosse espírito, a morte para mim não existiria, haveria somente corrupção do meu corpo; ela existe somente enquanto tenho consciência, sei que vou morrer. Entao: pode morrer o pensamento para o qual a morte existe? Aquele que a faz ser pode lhe estar sujeito? O homem, cada um em particular, e a vida como tal são uma universal condenação a morte? Por ora, um primeiro ponto fixo: a consciência faz com que, para o homem, e só para ele, a morte existe: mas isto nos deixa entrever que admitir o fim da consciência pensante é desafiar a contradição e aceitar o absurdo. Trata-se de saber se a morte envolve também a consciência pela qual existe- e como ato consciente é ato de vida consciente-, ou se ela é a consciência de que morre o corpo, o organismo ou o animal, mas não a própria consciência que consciente dele e por qual o fim do organismo também é "morte" e não somente "corrupção".


(Michele Federico Sciacca)

sábado, 2 de março de 2013

Facebook em Zygmunt Bauman


Segundo o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, o facebook é uma espécie de revista "caras" individual onde a pessoa comum se exibe da mesma forma que o fazem as celebridades nas revistas impressas. De fato tornou-se hoje o local próprio para o exercício de um exibicionismo grosseiro que está a serviço de uma autopromoção patética de si mesmo. "Penso logo existo" é substituído por "sou visto logo existo". As relações significativas estão gradualmente passando da intimidade para o que psicanalista francês Serge Tisseron chama de 'extimidade'. Celebridades encarnam essa nova condição, funcionando como estrelas-guias e padrões a serem seguidos para as massas que sonham e lutam em tornar-se commodities vendáveis.

É verdade que é possível o uso das redes sociais de forma sadia e equilibrada. Porém é também verdade que o limite que separa o uso equilibrado do uso dependente, é extremamente tênue e frequentemente ignorado pela maioria dos seus usuários. Cabe a cada um fazer uma análise sincera de si mesmo. Aliás é  curioso como todos julgam-se estar entre os equilibrados, ainda que sintam desconforto ao se desconectarem por períodos prolongados. A necessidade diária de fazer uso de redes sociais é um hábito facilmente adquirível por ser excelente compensador e anestésico das misérias afetivas e sociais do homem moderno.

"Esquecidas ou jamais aprendidas, as habilidades da iteração face a face, tudo que se poderia lamentar como insuficiências da conexão virtual online, foi saudado como vantajoso. O que o Facebook, o Myspace e similares ofereciam, foi recebido alegremente como o melhor dos mundos. Pelo menos foi o que pareceu àqueles que ansiavam desesperadamente por companhia humana, mas se sentiam pouco à vontade, sem jeito e infelizes quando cercados de gente" (Zygmunt Bauman)

Me parece inegável que o grande sucesso do facebook ao redor do mundo deve muito ao tripé: exibicionismo, autoafirmação e solidão. Porém o saldo final da tentativa de maquiar nossas próprias misérias é sempre negativo e amargo. Apesar disso, esse fenômeno é universal e manifesta-se em todos os meios e círculos sociais, desde os mais primitivos até os mais sofisticados, porém curiosamente está presente de forma mais intensa nos meios intelectuais e religiosos.

Há uma certa preocupação em vomitar análises originais do que quer que seja e avidez em compartilhar imagens e links inéditos, para então ganhar um séquito fiel de admiradores virtuais e curtidores de status.  

Sob as mais diversas égides artificialmente criadas, aparentemente nobres e muitos justas, o que acontece é um verdadeiro espetáculo de autoafirmação e vaidade. Quem nunca se deparou com perfis de usuários que apresentam-se como grande eruditos das ciências humanas tendo-se como mais sofisticados intelectuais e filósofos? A vaidade é um reação frequente diante da adulação de sequazes virtuais.

 Essa tendência de insuflar a própria imagem e posteriormente querer acreditar no próprio teatro, não deixa de ser uma tentativa de mascarar a ruptura interna e tendência à fraqueza que todos nós carregamos.Todos sentimos a nossa vida real como uma essencial deformação da nossa vida possível (Ortega y Gasset).

O meio virtual do facebook não deixa de ser também uma uma ilusão confortadora. A tendência do indivíduo se isolar com as pessoas que tenham suas mesmas convicções e posições ideológicas é uma realidade facilmente verificável. Vide a extensão limitada do compartilhamento de imagens legendadas que vendem convicções sem fundamento metafísico. Isso promove uma falso senso de realidade; como se estivesse ocorrendo diminuição de litígios e embates a cerca das diversas visões de mundo e ser humano; que na vida real, se digladiam diariamente para chegar ao poder.


sábado, 9 de fevereiro de 2013

Realização profissional em Viktor Frankl


Viktor Emil Frankl nascido em Viena em 26 de março de 1905. Neurologista e psiquiatra, morreu aos 92 anos. Médico judeu, foi prisioneiro por longos e penosos anos em Auschwitz, mas conseguiu sobreviver. Ressurgiu do inferno dos campos de concentração nazista sem rancor, mágoa ou amargura, com uma das mais belas mensagens de esperança que o mundo já viu. Foi sem dúvida um gigante do nosso tempo e é certamente alguém que fala com conhecimento de causa sobre o sentido da vida humana, que segundo ele, jamais deixa de existir por mais miserável que seja a situação do indivíduo.

O Dr. austríaco, através da sua impressionante trajetória de vida, cria o conceito de doenças noogênicas, bastante desafiador na medicina até então, dado que a psicanálise sempre estudara o homem segundo um viés bastante imanentista, olhando apenas para as causas somáticas e psíquicas do sofrimento humano, ignorando as propriamente espirituais.  Noogênico quer dizer proveniente do espírito. Com isso ele desenvolve um dos mais impressionantes sistemas de terapia já construídos, a chamada "logoterapia" ou terapia do discurso. Um dos poucos sistemas que parece não ser ser incompatível com uma visão do ser humano de acordo com as grandes tradições religiosas do legado judaico-cristão. Não está no mesmo nível das "linhas psicoterápicas" já existentes, nem pretende ser uma espécie de filosofia pura e simples; muito menos usurpar o papel próprio da Religião. Talvez se possa aferir que a logoterapia está no meio termo entre eles. Engloba um conjunto de esquemas lógicos que busca desmontar os subterfúgios racionais pela qual a mente doentia poderia concluir que a própria vida é destituída de significado. 

Mas o que ele tem a nos ensinar sobre realização profissional? Absolutamente tudo. Desgraçadamente a maioria dos pedagogos, educadores e psicólogos que atuam em orientação vocacional nem mesmo sabem o que é realização profissional exceto raras exceções. Infelizmente muitos não passam de papagaios repetidores de chavões e frases de efeito. Basta uma simples maiêutica para se chegar a uma série de contradições internas e definições circulares. No final das contas, a grande lição de "sabedoria" é sempre a mesma. Aconselham uma série de adolescentes indecisos, a seguir as suas próprias tendências afetivas; sem aquilatar se as mesmas são imaturas, caóticas ou desajustadas. Qualquer oposição a tal ensinamento é politicamente inadequada.

Segundo Stephen Kanitz (administrador por Havard), a repetição do mantra "fazer o que se gosta", é um conselho confuso, perigoso e por vezes equivocado. Ele afirma que no mundo real, empresas pagam profissionais para fazer o que a sociedade acha importante e necessário ser feito, não aquilo que os funcionários gostariam de fazer. Ele constata ainda que uma sociedade em que todos os membros escolhem profissionalmente o que gostam; é uma verdadeira utopia e só seria possível a custa de caos e desordem social. Nas suas palavras:

"Seria um mundo perfeito se as coisas que queremos fazer coincidissem exatamente com o que a sociedade acha importante ser feito. Mas, nesse caso, quem tiraria o lixo, algo necessário, mas que ninguém quer fazer?"

Suas palavras podem ser pragmáticas e cruéis mas não deixam de ser verdadeiras. Podem acusá-lo de um pensamento utilitário mas pelo menos seu pragmatismo tem mérito no altruísmo daquele que faz aquilo que tem de ser feito em comparação com o hedonismo do egoísta que só "faz aquilo que gosta".

Isso porém não significa que o indivíduo deve escolher uma profissão ou trabalhar em algo que odeia. Só está se afirmando que é extremamente simplista polarizar de forma cristalizada o ser humano nos seus gostos, aptidões e preferências. Sempre me pareceu um reducionismo enorme afirmar que o homem só pode ser feliz no trabalho em uma determinada profissão específica. Isso é reduzir a complexidade humana e a importante decisão profissional à tendências afetivas e aptidões momentâneas. Habilidades podem ser aprendidas e novos talentos descobertos. Os sentimentos humanos são extremamente volúveis. Tomar decisões perenes, tendo-os como base é um erro crasso. O campo afetivo do homem pode e deve ser educado pela inteligência e pela vontade. A  educação dos sentimentos é tema já abordado por C.S. Lewis na sua obra clássica: "A abolição do homem".

A solução, portanto, para o impasse, segundo Stephen Kanitz, é aprender a gostar daquilo que se faz, através da busca da excelência e da satisfação do cumprimento do dever. Em suma, trabalhar em algo que se gosta, é consequência de aprender a gostar do próprio trabalho. Ensinamento simples e muitas vezes mais adequado, do que aconselhar a mudança de profissão e um recomeço trágico a partir do zero.

Porém a educação dos sentimentos alicerçada apenas nesses dois fatores indicados (busca da excelência e cumprimento do dever), é; apesar de importante, ainda incompleta segundo o meu entendimento. O que principalmente educa os sentimentos e os faz mover em determinada direção é a beleza. Gostamos de determinado trabalho, quando temos a convicção que determinado modo de ser, de viver é bom e belo. Ama-se o cumprimento de um dever, seja ele profissional ou acadêmico, quando visualiza-se seu aspecto de beleza (Juan Luis Lorda). A moção dos afetos proporciona um enorme incremento de espírito de sacrifício. Nesse sentido, é perda de tempo ficar escrevendo mais a respeito. Nenhuma consideração teórica substitui a força de uma paixão retamente orientada.

Viktor Frankl reconhece que na plenitude da moralidade, bens e deveres se confundem mas vai além e disseca ainda mais o que seria esse bem, essa satisfação da realização profissional. Seria a realização profissional meramente um sentimento agradável que dimana do homem como consequência do exercício exclusivo de uma determinada atividade profissional? A resposta de Frankl a esse questionamento é surpreendente e certamente escandalizaria nossa geração de pedagogos e psicólogos.

Frankl identifica o sentido da vida com o exercício de certos valores humanos, que segundo ele podem ser divididos em três categorias. Valores criativos, valores vivenciais e valores de atitude. Defende também que não há circunstância possível, por mais absurda que seja, no qual ao menos um deles (o valor de atitude) não possa ser exercido. Para não perder o foco, tratar-se-á aqui apenas dos valores criativos.

A realização dos valores criativos, ocupa o primeiro plano da missão na vida e a sua esfera de consumação concreta costuma coincidir com o trabalho profissional, cuja o caráter de irrepetibilidade faz-se presente de forma decisiva. O trabalho constitui, assim, uma possibilidade de colocar-se a serviço dos outros. É nesta possibilidade de ser uma contribuição e expressão original, que o trabalho ganha relevância e significado para a pessoa, constituindo-se ocasião de descoberta e integração da própria personalidade. Torna-se, então, fundamental a maneira como se trabalha, adquirindo menor importância a tarefa em si. Nas palavras de Frankl:

"Em particular, o trabalho pode representar o campo em que o "caráter de algo único" do indivíduo se relaciona com a comunidade, recebendo assim o seu sentido e o seu valor. Contudo, este sentido e valor é inerente em cada caso à realização (à realização com que se contribui para a comunidade) e não à profissão concreta como tal. Não é, por conseguinte, um determinado tipo de profissão que oferece ao homem a oportunidade de atingir a plenitude. Neste sentido pode-se dizer que nenhuma profissão faz o homem feliz.(...) Nos casos em que a profissão concreta não traz consigo nenhuma sensação de plena satisfação, a culpa é do homem que a exerce, não da profissão. A profissão, em si, não é ainda suficiente para tornar o homem insubstituível; o que a profissão faz é simplesmente dar-lhe a oportunidade para vir a sê-lo". (Frankl, 1989)

Para Viktor Frankl a realização profissional é independente da profissão. A satisfação e a realização profissional está vinculada portanto à expressão da singularidade e unicidade do próprio ser em prol de uma comunidade, causa ou pessoa.

“O que importa não é, de modo algum, a profissão em que algo se cria, mas antes o modo como se cria; que não depende da profissão concreta como tal, mas sim de nós, o fazermos valer no trabalho aquilo que em nós há de pessoal e específico, conferindo à nossa existência o seu caráter de algo único, fazendo-a adquirir, assim, pleno sentido.” (Frankl 1989)

 A vocação profissional é apenas parte da vocação maior antropológica do ser humano e a ela deve estar submetida. Deve portanto se curvar ao chamado de uma missão em particular que só pode ser executada pelo próprio indivíduo e mais ninguém. Tal chamado antropológico não pode ser inventado ou criado e sim descoberto. O ser humano possui naturalmente no seu interior uma "sede de infinito" que o transcende. Dificilmente esse sumidouro interno poderia ser aplacado por uma atividade profissional em si, por mais complexa que seja, pelo simples fato de ser sempre limitada. Nesse contexto a possibilidade de realização profissional, segundo o viés do homo religiosus, que vê no oferecimento à Deus dos sacrifícios e litígios inerentes ao trabalho; uma forma de santificação da própria alma; é extremamente apropriada e complementar.

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quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

História da Igreja: Uma consideração intempestiva.


Em tempos de amnésia e de ignorância história programada, de deterioração da línguagem e do pensamento, em que se encontra amplamente perdidas ou assaz indistintas (na consciência do público em geral e, sobretudo, das gerações mais jovens) as coordenadas do passado, as raízes e a configuração multissecular da nossa cultura, é sempre oportuno e benéfico revisitar as suas origens, aperceber-se do seu perfil profundo e bem marcado, mesmo que seja através do percurso cronológico, sinuoso e constrastado, por vezes indecoroso, de uma das instituições que mais marcaram a Europa, que mais a desafiaram, que mais a perturbam: a Igreja Católica.

Sabemos que a memória, por natureza, é já seletiva nos seus processos e nos seus objetos. Mas custa-nos reconhecer, resistimos a confessar que ela, quando nossa, se torna unilateral, partidarista, deformadora e falsa na obediência e na rendição a preferências subjetivas, sejam estas de hostilidade renitente ou de adesão apaixonada. Muitas vezes, porém, nem sequer chega a ser memória, mas antes um novelo de dados isolados e desconexos, de notícias soltas, de suposições nevoentas, de preconceitos ociosos, de argumentos acríticos. E como já argutamente, na segunda metade do século XIX, reconhecia o Cardeal John Henry Newman - "quando a lógica falha, os homens tornam-se pessoais; é seu modo de apelar para os seus elementos primários do pensamento, para seu sentido ilativo, contra os princípios e juízos de outrem" - ou seja, quanto menor é o conhecimento efetivo de um objeto, tanto maior é a força com o que o elemento subjetivo e arbitrário irrompe na consciência e na expressão a seu respeito, tanto maior também a margem de erro e de falsidade do discurso.

E se o objeto do juízo histórico (e da memória expressa) de muitos for, por exemplo, o cristianismo ou o Catolicismo? Então o caso agrava-se, pois esta entidade institucional, mais antiga do que todas as nações européias, com tamanha história, com tantos efeitos e influências culturais, com todas as marcas das fraquezas e das contradições humanas e com a revindicação da sua missão divina, a ninguém permite neutralidade ou indiferença.

Historiadores há, como René Remond, que constatam na Europa, nas últimas três décadas, um aumento, aparentemente orquestrado e nutrido nos meios de comunicação, do descrédito do cristianismo, sobretudo da Igreja Católica, especialmente no plano intelectual. René Remond chega mesmo a falar de uma "cultura de desprezo", de um conformismo generalizado no sarcasmo ou na irrisão em face do Catolicismo, contra o qual todos os insultos são permitidos na imprensa, na televisão, na literatura, nas novelas históricas, no cinema, nas artes plásticas e performativas, enquanto se nota uma maior consideração e deferência perante outras grandes religiões como o judaísmo, o islamismo e sobretudo o budismo.

Nos EUA, dois autores, Vincent Carroll e David Shiflett, denunciaram também, há pouco, no contexto do politicamente correto e de um secularismo militante e fundamentalista, o facciosismo anticristão nos meios de comunicação, a perda da memória e de uma perspectiva correta quanto ao papel do Cristianismo e da Igreja na história, sobretudo nos temas relativos à fundação do Ocidente, à abolição da escravatura, à importância da matriz cristã para a emergência da ciência moderna, à atitude em face do ambiente e ao revigoramento da idéia democrática. Tratar-se-á apenas de uma das muitas guerras da cultura que, segundo Max Webber, é 'politeísta' de jeito e feição?

É um fato: existe hoje uma ruptura entre o Evangelho e a cultura. A Igreja já há muito deixou de ser a matriz da sociedade e também se vai dando conta de que, no fundo, a 'cristandade' foi, em grande parte, um mito, e de que o Ocidente nunca de todo se deixou cristianizar. A mensagem bíblica, apesar da sua penetração transformadora no espírito ocidental, viveu sempre em tensão com os pressupostos da cultura greco-romana e também com o fundo pagão da alma européia. O panteão desta última nunca ficou de todo vazio sob o domínio e a presença do Deus de Israel e do cristianismo, e hoje, após o colapso das várias "religiões seculares" dos últimos cento e cinquenta anos -nacionalismos, marxismos e comunismos, fascismos- e em pleno torpor metafísico do culto do consumo e da mercadoria, enche-se de novas divindades, algumas delas repristintações caricatas de antigos deuses tribais por grupos neopagãos de europeus ou ocidentais espiritualmente atarantados.

O resultado destre intrincado processo, qua arrasta a civilização inteira, as suas instituições, os grupos e os indivíduos, é a marginalização do Catolicismo, a indiferença perante os seus conteúdos ou o seu anúncio, uma espécie de "extraculturação" sua. Significa esta expressão que as suas referências da Igreja emigraram do campo social, se diluíram na atmosfera cultural dominante, se esfumaram no seu significado ou na sua relevância, se perderam na meio da troada dos inúmeros ruídos que ressoam na nossa atmosfera espiritual.

 Se, como referiu o filósofo e teólogo protestante Schleiemacher, nas primeiras décadas do séxulo XIX, " o cristianismo foi criador de linguagem , foi e é ainda um espírito linguístico potenciador, sem jamais-providencialmente- se ter deixado anexar pela verdade helência", então um dos sintomas mais gravosos do turbulento devir espiritual dos nossos dias é a inintegibilidade cada vez maior com que a mensagem cristã, as alusões, figuras, imagens e expressões bíblicas, litúrgicas e teológicas deparam no discurso comum e, dentro do recinto peculiar da escola, nos ecos da literatura; e ainda a sua insignificância crescente para a consciência individualista, normalizada, cortada de qualquer universidade, do cidadão médio.

Assistimos, depois, à plena tribalização da sociedade, com reflexões também dentro da própria Igreja, onde se multiplicam nas suas posições e se assiste a um certo divórcio entre a hierarquia e o corpo dos fiéis, onde se sente e se vive uma generalizada crise de transmissão, de persistência e de fidelidade ao que foi recebido, devido à ruptura social, à dificuldade de unificação e de harmonia da vida individual nas estruturas sociais de formação escolar, do trabalho, da instituição familiar e do lazer. De fato após a infância e a adolescência, a Igreja quase perde o contato com muitos daqueles que antes catequizara e não chega a uma grande parte das novas gerações justamente na altura em que nelas começam a sedimentar-se as convicções orientadoras da existência.

Por outro lado, a elite intelectual ocidental, no seu halo social e na sua influência midiática, tornou-se cristofóbica, fascinada mas também suspeitosa diante da figura de Jesus de Nazaré que, em contraste com a atitude dominante de respeito ou aceitação tolerante perando outros fundadores de religiões, recebe e desperta em muitos, como resposta ao seu desafio indeclinável, o sarcasmo, a injúria e a construção delirante de biografias ou interpretações da sua pessoa sem qualquer fundamento na realidade histórica e nascidas apenas de uma manipulação imprudente de textos, muito ao sabor da indiferença veritativa da mentalidade pós-moderna e de acordo com os ditames da sua alquimia niilista.

É uma elite intelectual perplexa perante o fenômeno religioso em geral, que ela não consegue, ou nem sempre quer entender bem; e, na situação presente (e perigosa) de recrudescimento anômalo e extra-institucional do religioso, começa a ser estouvada e pouco séria. É uma elite ferida e ressabiada, porventura cheia de ressentimento ou marinar de niilismo, após o fiasco de todas as aventuras da ideologia moderna, de direita ou de esquerda, burguesa ou revolucionária, que desaguaram em formas totalitárias e violentas.

Compreende-se assim o seu pasmo em face de um objeto hermenêutico estriado, como é o cristianismo nas suas múltiplas formas históricas, ou perante a imensa ambiguidade civilizacional do Catolicismo com o seu peso institucional, o seu exercício da autoridade, as suas aparentes inércias e também a sua capacidade inegável e invejável de superar crises. A tentação é então fornecer interpretações simplistas e predominantemente pejorativas, exagerar as sombras ou as manchas (que também são reais), admitir por vezes um injustificável e falso determinismo noético (os famosos efeitos autoritários do "monoteísmo"!), ocultar e silenciar as realizações culturais genuínas ou ignorar o marco condicionante, estruturador ou estimulador do cristianismo e da Igreja que indiretamente, com o seu imaginário, fertilizou a fantasia e levou à concepção e à criação de grandes obras culturais de conteúdos muito diversos.

Há mesmo quem se arme em profeta e afirme que o cristianismo, tal como o marxismo, teria já tido o seu tempo (mas aqui confunde-se o nosso tempo curto com o tempo longo, as conjunturas econômicas, as correntes sociais e os fatos políticos do presente com a longa duração, com a teimosa e exasperante sobrevivência das crenças); ou que ele caminha para seu termo, dada a queda vertiginosa da prática religiosa daqueles que se dizem católicos (mas também aqui a afirmação da iminente situação minoritária do cristianismo não passa de "wishful thinking" e é refutada pelos dados e estatísticas, contrasta à realidade dos laços intermitentes que unem ainda muitos à Igreja na celebração dos grandes momentos da existência -nascimento, matrimônio, batismo e morte).

Há igualmente quem continue aferrado ao dissídio ou à contradição entre fé e razão, na senda de Diderot, Voltaire, Condorcet, Paine e Comte e de muitos outros, mas tratam-se de mamutes epistemológicos, soletrando epigonalmente a cartilha do Iluminismo, do seu "intelecto celibatário", guiado pelos interesses subjetivos e pela paixão do poderio e da dominação, separado da torrente multidimensional e multinivelada da vida que ninguém controla ou cognitivamente abarca. Não atendem aos inúmeros matizes da nossa linguagem perita em muitos usos e gêneros de discurso, radicada nas múltiplas formas de vida com seus pressupostos , suas regras, seus consensos, e escapa-lhes que a nossa racionalidade, mesmo a científica, está adstrita à tradições. E, bem vistas as coisas, dão provas de uma falta de atenção e de sensibilidade cultural ao que hoje acontece, pois o tema das relações entre ciência e religião, ciência e fé cristã, é agora um campo de intensíssima e fecunda reflexão, e até dos mais ativos e promissores (e claro, dentro no inesperado e surpreendente desvelamento ôntico e factual da complexidade misteriosa do universo) por parte de muitas ciências.

É por esta e outras razões que uma História da Igreja tem importância cultural. Nada saber, por exemplo, da questão socrática ou platônica, da revolução copernicana, da crise das ciências no final do século XIX, das principais obras literárias do "cânone ocidental" (Harold Bloom), das grande obras musicais ou pictórias, do estilo barroco ou do expressionismo, da teoria da relatividade, do código genético e do princípio antrópico e etc, é um sintoma indiscutível  de profundas lacunas no âmbito da cultura. E não saber situar as verdadeiras raízes dos direitos humanos, do sujeito moderno, da emancipação da mulher, da separação entre religião e política, do núcleo forte da idéia democrática, da origem, do desenvolvimento e dos gêneros literários da Bíblia, das suas formas, da sua redação ou da sua influência e dos seus ecos nas literaturas européias - o que seria?

Se a história como diz Sir Owen Chadwick, reputado historiador do cristianismo, "mais do que qualquer outra disciplina liberta a mente da tirania da opinião presente", então um conhecimento ao menos moderado de História da Igreja pode servir de remédio e de correção a muitas opiniões falsas, difundidas no espaço público, nos meios de comunicação, no jornalismo e nas falanges de uma intelectualidade, por vezes, preguiçosa no que toca ao conhecimento do objeto de sua crítica ou do seu ataque.


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Pequeno excerto introdutório de autoria do Artur Morão (Dr emFilosofia) na obra História da Igreja dos autores J. Derek Holmes e Bernard W. Bickers.